22 novembro 2010

Ingénuo

A liberdade é algo que dou como adquirido. Viver na Europa, historicamente palco dos maiores conflitos mundiais e hoje pacificada devido aos esforços de integração política e económica, permitiu-me escolher livremente o que pensar e como reger a minha vida. Isto é algo que, a par com o valor da tolerância, prezo acima de tudo. Poder expressar livremente as minhas convicções e discordar abertamente das ideias dos outros tem sido essencial na construção do que posso apenas definir como a minha ideologia pessoal.
Ao contrário do que fazem parecer os blogs de esquerda e de direita, a ideologia não é algo que se apropria de nós de forma homogénea, orientando a nossa vida através de uma série de dogmas intocáveis. É apenas uma plataforma de ideias fundamentais a partir das quais confrontamos a realidade, formulando objectivos a atingir para adequar a realidade a esses princípios através de um conjunto de acções concretas. Isto dá trabalho, o que leva a que muita gente prefira importar ideologias “pré-fabricadas” prontinhas a consumir. Com ideias mais ou menos abrangentes, objectivos imutáveis e formas de acção fixas e tudo facilmente enquadrável em campos estanques de pensamento.
Da direita distancio-me facilmente. A crença na força do status quo nunca me subjugará. É, por isso, a esquerda que me aflige. É na esquerda que deposito esperanças; naquele idealismo incessante de quem acredita que podemos mudar o mundo. Só que a esquerda que leio todos os dias nos blogs, que retiro das acções dos meus colegas e que é retratada pela maioria dos media, não é a minha esquerda. Não vou aos arames com touradas ou praxes; não defendo a causa palestiniana (tampouco apoio Israel…); não reajo a todas as mudanças estruturais com o conservadorismo sindical (estranho que todas as mudanças são para pior – é um sucessão de reformas más que se tornam bestiais quando querem voltar a reformar); não odeio a UE e a NATO; nem embarco em relativismos culturais obtusos que apenas visam branquear comportamentos que deveriam ser intoleráveis para cidadãos livres e esclarecidos.
Penso a esquerda de uma forma diferente. Acredito no valor da igualdade, mas não à custa da liberdade. Sei que a felicidade é maximizada não pelo que se tem, mas pelo que todos temos. Seremos mais felizes quando formos tratados de forma igual; quando se abolirem as deferências e hierarquias sociais; quando o melhor canalizador, juiz, bombeiro, gestor ou político não só forem remunerados similarmente, mas principalmente quando forem encarados como igualmente importantes. Estes são os meus ideais e o começo dos meus problemas porque para a sua concretização a esquerda nada me oferece. Oferece-me meios para abolir a criminalização do aborto ou lutar pelo direito de qualquer pessoa a se casar independentemente da preferência sexual. Mas quanto ao que acho importante, aos objectivos que retiro dos meus ideias, nada feito. É por isso que vivo politicamente desamparado, longe de quem come toda a esquerda como uma ideologia unitária, debitando o pacote de ideais pré-estabelecidos. Pronuncio-me a descoberto da ideologia, sujeito aos ataques óbvios da direita e cada vez mais também da esquerda.
O que sou afinal? O que é alguém que acha irrelevante a praxe (dentro da legalidade); que considera a NATO fundamental num mundo em que a força ainda é um mal necessário; que considera o caminho da UE como válido ainda que imperfeito; que confia no poder das leis como garante das liberdades; que não aceita fundamentalismos, sejam da direita norte americana ou o dos islamitas; que acredita numa economia de mercado justa e distributiva, em que os trabalhadores têm assento nas administrações e partilham dos lucros; que não aceita uma Administração Pública refém de funcionários não qualificados, agarrados à burocracia e aos direitos adquiridos; e que, sobretudo, não vê caminhos a seguir, nem estruturas a que se agarrar.
Podem-me chamar do que quiserem, mas de ingénuo não. Sou apenas alguém que não pensa nos vossos moldes e que, não estando desorientado, não encontra o caminho.