09 fevereiro 2007

Contraditório

Decidi fazer um post e não um comment pela chatice que é ler textos grandes em pequenas janelas. Para se perceber este post é imperativo ler quer o texto anterior sobre o aborto quer todos os seus comments.


Caso ainda não tenhas percebido, tanto o meu post inicial como o meu comment estão escritos num tom de gozo óbvio. Apesar de ilustrarem uma ínfima parte daquilo que penso, não existem senão como chacota de algumas posições que têm vindo a ser defendidas pelas campanhas do Não. Servem acima de tudo como forma de expressão da verdadeira repulsa que sinto em viver num país em que pelo menos parte (esperemos que o referendo não confirme a catástrofe completa) da sua população se deixa levar por campanhas abertamente enganosas e habilmente manipuladoras como a do Não. Pior! Um país em que provavelmente tais campanhas nem sequer seriam necessárias (ás vezes acredito que existe uma conspiração para me estragar o dia) dado o grau de tacanhez das pessoas que a elas aderem. Parecendo pouco patriótico (diriam algumas vozes) sei que não o sou, apenas acredito que somos melhores que isto.

Passando a coisas sérias. As razões porque defendo o voto no Sim são mais que evidentes, em parte porque têm sido bem espelhadas pela campanha do Sim (que estranhamente parece desaparecida; se calhar deviam dar mais brindes, não sei…), em parte por serem (aparentemente não) indiscutíveis. Se calhar devia começar por uma lição de história, frisando as consequências negativas que os pensamentos dogmáticos da Igreja Católica têm acarretado para Portugal desde a Idade Média. Não o faço, acho que seria demasiado arrogante, ainda que relevante. A uma lição de Direito Penal é que não vou fugir.

A função do Direito Penal é a seguinte: identificar que comportamentos é que uma sociedade considera afectarem profundamente direitos pessoais de cada indivíduo ou o próprio funcionamento dessa mesma sociedade e que se acredite que pela sua gravidade seja necessária a imposição de uma pena a quem os praticar. Existem várias teorias, potencialmente aborrecidíssimas, que permitem identificar estes comportamentos e em que medida devem ser punidos. Este referendo serve somente para ajudar os legisladores, que sempre fizeram este trabalho sem consultar massivamente a população, a decidir se este comportamento específico (interromper voluntariamente a gravidez até ás 10 semanas) é considerado pela comunidade como suficientemente gravoso para ser punido com uma pena de prisão. A pergunta em si reflecte logo várias concepções formadas ao longo do tempo e que reflectem o avanço da sociedade ao longo dos últimos 20 anos: que cientificamente é quase unanimemente aceite que até ás 10 semanas não se pode dizer que exista um ser humano; que a interrupção da gravidez tem de ser obrigatoriamente voluntária, o que implica que a vontade de abortar tem de ser livre das pressões que os defensores do Não tanto temem; e que a questão existe por a actual lei não ser praticamente implementada por recusa da maior parte da população de a aceitar ou sequer a apoiar no sentido de não a querer ver aplicada.

Saindo do mundo do Direito, o que se que aqui não é mais do que dar a liberdade de escolher. Não se impõe nada a ninguém, não se impede ninguém de ter filhos, não se impede ninguém de julgar moralmente quem pratica o aborto. O que a lei actual (relembro que é essa que o Não está a defender) faz é usar a máquina penal, que é nem mais nem menos que o peso do juízo de valor de toda uma colectividade, para impedir que o aborto se efectue. Para mim o simples facto de existirem dúvidas que a maior parte da população queira que este juízo se faça, devia ser suficiente para que acabar de vez com esta lei.

Eu, ao contrário da dri (ainda que concordando com tudo o resto que ela disse) percebo porque votas Não. Tenho pena é que não contrarie a primeira premissa do meu post original, porque:

Acreditas que possuis a verdade última sobre questões que não te dizem respeito. Dás mais valor ao desenvolvimento de uma possível vida humana que ao desenvolvimento normal de uma que já existe. Sentes-te suficientemente sapiente para decidires sobre a vida de outras pessoas. Continuas a pôr, estranhamente, interesses económicos acima do bem-estar e da saúde das mulheres que querem abortar(e o vão continuar a fazer). Lutas por uma lei que vai manter inalterados uma série de problemas que todos reconhecemos como tal. Distorces a discussão inserindo o argumento da promoção da natalidade, nunca fui mais a favor. Assumes que eu quero ter uma palavra a dizer sobre se a minha namorada aborta ou não; não quero.

Queria só acabar dizendo que normalmente não sou uma pessoa intolerante em relação àqueles que têm posições diferentes da minha (não quero dizer que não pareça, mas apenas porque me da gozo discutir). Existem é limites a essa tolerância e este é um dos meus.