12 outubro 2009

Da Coca para o Mundo

Da discussão mencionada no post anterior surgiu uma outra, bastante mais séria, mas não menos polémica. Este meu preconceito (que não o é, pois já conceptualizei o suficiente em torno dele) acerca de formas de viver que não a desenvolvida pelo mundo ocidental, voltou a causar espanto entre os meus convivas. A verdade é que penso realmente que a “forma de viver ocidental” é a forma certa de se viver e foi isto que causou estupefacção.
O que entendo por forma ocidental (a meu ver mesmo só europeia) de viver é um desenrolar sequencial de eventos futuros, baseados nas evoluções passadas. Obviamente que isto faz de mim um optimista que apaga todas as involuções. Creio, apesar de tudo, que existe uma sequência lógico-temporal definida que subjaz ao estilo de vida europeu. Para mim começou-se com os valores do antropocentrismo, do iluminismo, da democracia, do laicismo, da cientificidade e do liberalismo social. Acredito que a sociedade do futuro será pautada por uma absoluta aceitação de todas as idiossincrasias individuais, sendo imperativo que estas só existam quando houver um sentimento de pertença ao sistema na sua globalidade. O que quero dizer com isto é que, por exemplo (partindo das fáceis para as difíceis), a forma de vestir, seja ela qual for, não possa interferir de forma alguma no estatuto social do indivíduo. Para um exemplo mais forte e mais próximo do meu end game,  o uso de uma burka, de uma corrente ao pescoço ou de uma gravata têm de ser igualmente respeitados a partir do momento em que quem usa a burka o faça por gosto pessoal, quem usa a corrente ao pescoço seja respeitador da diferença e quem usa a gravata não o faça apenas para “pertencer”. No fundo, qualquer comportamento, por mais estranho que parece à pessoa média, deve ser aceite se não for contra os valores básicos de civilidade e de respeito pelo sistema global.
Esta minha posição sobre qual a forma correcta de “evoluir” leva a que não ache propriamente atractiva a vida dos índios sul-americanos ou dos místicos indianos, já para não falar nos países muçulmanos. Este meu extremismo leva a que não exista da minha parte um grande respeito por tradições ancestrais ou pelas formas “simples” de viver. Apenas lhes chamo atrasos. Contudo, ao contrário da maior parte das pessoas que pensam assim não sou nem hipócrita nem intolerante. Não sou hipócrita porque não quero visitar esses locais para não me sentir a faltar ao respeito a essas pessoas e não sou intolerante porque não lhes quero impor a minha forma de ver o mundo. A não ser em 2 situações muito específicas: quando a forma como agem for abertamente  contra aquilo que se consideram os Direitos Humanos; e quando qualquer representante destas comunidades decidir, de livre vontade, habitar na minha comunidade (e falo aqui de forma lata, abrangendo toda a Europa).

4 comentários:

Unknown disse...

Tens o direito a hierarquizar "formas de viver" e "formas de evoluir". Mas parece-me estranho que defendas a cientificidade e, paradoxalmente, uma visão altamente moralista do "sistema global". Se se levassem as assunções básicas da cientificidade ao seu corolário lógico, terias de submeter as tuas próprias proposições a um inquérito empírico que te obrigaria a pesar as involuções, como lhes chamas.

Quando falas da "absoluta aceitação de todas as idiossincrasias individuais, sendo imperativo que elas só existam quando houver um sentimento de pertença ao sistema na sua globalidade", reproduzes algo que abomino: o corporativismo moral. Isto desemboca em algo que tu próprio detestas: a imobilidade social supostamente inerente às "formas simples de viver" e antónimo do liberalismo social. A prioridade sistémica é característica dos regimes autoritários, não das Luzes ou da democracia.

Cada um pensa aquilo que quiser. Temos liberdade de expressão e essa é uma conquista que não podemos desprezar. Só que também não podemos desprezar a capacidade de reflectirmos acerca dos nossos valores. Voltando à cientificidade: existem muitos, mas mesmo muitos estudos que demonstram quão frágil é essa ideia de "evolução" "correcta" - e não foram todos escritos por tipos radicais ou agitadores. A maior parte desses estudos, que procuram uma visão histórica global, criticam o dualismo dos sobranceiros que homogeneizam os outros, tirando-lhes a sua herança histórica, e glorificam a sua própria complexidade. De caminho, esquecemo-nos das tais "involuções" - e, como alguém disse, "aqueles que não conhecem a história estão condenados a repeti-la" ou, citando alguém que figura no teu blog, "a história repete-se, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa".

Acho particularmente estranho que fales em gosto pessoal: se priorizas a estrutura, o gosto pessoal não é mais que uma função dessa estrutura. Portanto, se uma mulher andar de burqa porque gosta, isso já não será violência, mas opção. Não concordo com isto. Usar burqa é SEMPRE uma violência: as estruturas sociais que produziram a burqa são estruturas opressivas que objectificam as mulheres e eu não acho que possam ser aceites por um regime político democrático. Mas uma burqa é um produto de estruturas sociais deploradas pela maior parte dos muçulmanos. Tal como nem todos os seropositivos, no Ocidente, andam a foder sem preservativo para espalhar o HIV, apesar de existirem hedonistas que elevam a promiscuidade à condição de credo religioso - e sabes tão bem como eu que esta analogia é sustentável, embora possas não reconhecê-lo.
Contudo, acho que deve ser defendido o direito dos muçulmanos a advogar o uso do véu - em última instância, da burqa -, como os católicos têm o direito a advogar a imoralidade do aborto ou do uso de contraceptivos.

Há um ror de questões que poderíamos discutir. Fico-me por aqui.

Beko disse...

1. Eu nunca falo em “sistema global”, nem sei ao que te referes quando o mencionas.

2. Não sou nada moralista, se reparares faço exactamente o contrário. Nunca considero a minha verdade absoluta nem a tento opor à dos outros. Apenas considero certa, ou seja, aquela pela qual eu vou viver. Que tem isto de moralista?

3. Quando falo em cientificidade, não quer dizer que tenha de reger a minha vida pelo método científico. Apenas significa que só tomarei como certo (e podes argumentar que nada é absolutamente certo na ciência e eu estou-me marimbando para esse argumento) aquilo que for sendo comprovado através do processo científico. Não acreditarei em óvnis, deuses ou espíritos até que me demonstrem cientificamente que existem.

4. Compreendeste o que disse da forma mais absolutamente errada que pode existir. Aliás, acredito que percebeste perfeitamente e finges que não. O que quero para a sociedade é que, independentemente do modelo de vida escolhido (seres um corporate man, um hippie lavrador, ou um punk com aspecto de cangalheiro dos filmes da família Adams) e desde que respeites as instituições democráticas e a liberdade dos outros de não serem como tu, cada um tenha o mesmo respeito social e o mesmo tratamento à luz da lei (a escrita e a não escrita). Isto significaria, levando a um extremo, podermos ter um PM que em vez de fato usasse calças à boca de sino e t-shirt de marinheiro. Em que é que isto leva à imobilidade social?

5. Eu assumo, preto no branco, que limpo as involuções históricas da cultura ocidental (ou o que lhe quiseres chamar, ambos sabemos ao que me refiro). Faço porque acredito que tudo leva ao que tens hoje e à esperança do que podes ter amanhã. E é essa esperança que só me parece possível se viveres no meio dessa cultura europeia (e que não existe só na Europa). Porquê? Podes dizer que é o único sítio em que existe conforto suficiente para que isto se processe (a célebre frase: quem tem fome não pensa em Direitos Humanos), mas isso em nada afecta a minha ideia porque não a invalida.

6. Se uso de burqa é SEMPRE violento, o uso de t-shirts com o Che ou com a estrela vermelha é sempre comuna. Não pode só ser giro? Não podes gostar mesmo daquilo, sem conotações. Sei que criticas o uso dos lencinhos da Palestina, mas os putos estão-se a cagar e por mim, no problem. Pior era usarem os lencinhos dos fundamentalistas e acharem que eles têm toda a razão e rebentarem-se por Alá.

7. Não sei como essa analogia é sustentável.

8. Advogar, não de fazer. Pelo menos enquanto cá estiverem (sim formulação fascista…).

O meu texto seguinte, ou seja que seria a sequência do dos índios e deste, seria sobre aquele senhor muito simpático que vimos falar no Forum Lisboa aí à uns 2 anos e que proponha a autoregulação autónoma de “províncias”, situadas na Europa, pela sua população. Lembraste ao que isto podia levar e a forma benevolente como foi aceite pela audiência que naturalmente pertencia ao mesmo campo político que o nosso (não que eu o saiba definir, pouco ficou de ciência política…). Isso assusta-me, não quero que aconteça e não aceito isso como tolerância. Tolerância é aceitar quem quer que seja, desde que compartilhe uma base mínima de concordância com aquilo em que eu concordo. Se passa para lá do limite mínimo não. Um dia continuamos e sei que acabarás por concordar.

Unknown disse...

1. "No fundo, qualquer comportamento, por mais estranho que parece à pessoa média, deve ser aceite se não for contra os valores básicos de civilidade e de respeito pelo sistema global." Isto está escrito no teu texto.

2. Se não consideras a tua verdade absoluta, não podes, com honestidade, sustentar que há uma forma correcta e outra incorrecta de evoluir, ou uma forma simples e outra complexa de viver. Acho a tua visão do "sistema global" moralista porque é um sistema modelado em torno de considerações morais, subjectivas, não-científicas. Se consideras que a tua visão é a correcta e que o sistema global é governado por uma visão como a tua (já que ambos são ocidentais), então és moralista, na minha opinião.

3. De facto, nada é absolutamente certo em ciência. Tudo é probabilístico e só os cientistas sociais continuam a governar-se pelas categorias absolutas de Platão ou Kant. Basta vermos o que diz Heisenberg, Schrodinger ou Lorenz. É evidente que não tens de viver de acordo com o método científico. Isso seria estúpido e insustentável, porque te/nos obrigaria a formular hipóteses, a testá-las e a fazer proposições mais ou menos limitadas. Os seres humanos precisam de assunções para diminuir o ruído de fundo. É mais fácil. Nós somos máquinas detectoras de padrões. Mas, no que diz respeito à tua visão do mundo, é mais que legítimo exigir que sejas coerente e testes as tuas proposições de acordo com o método que defendes. Já o fizeste? Quando o fizeste, colocaste a hipótese de que há ou houve outros modelos não-simples e não-incorrectos?

4. Não foi essa a questão que coloquei. O meu problema não é esse. É o da prioridade do sistema em relação ao indivíduo. Havendo estruturas sociais que limitam a quantidade de escolhas ao dispor de uma dada pessoa, esse constrangimento é um passo decisivo no sentido de imobilizar. Pessoas, classes, ideias.

5. Invalida-a porque contesta a ideia de "desenrolar sequencial" e "sequência lógico-temporal" que subjaz à noção de civilização ocidental. Se estás disposto a colocar as tais involuções dentro dessa sequência, como é que se pode dizer que a forma de viver ocidental também não é simples e/ou incorrecta?

6. Usar um objecto cujo fim último é, sem margem para dúvidas, ultra-discriminatório e desumano, não pode ser comparado a qualquer outra coisa. Usar uma burqa só tem um objectivo: retirar a identidade de género e apagar qualquer individualidade. Não, não pode ser só giro e eu não me sentirei apenas repugnado, quando vir isso em Lisboa, como quando vejo putos idiotas com um kuffiyeh. Será um confronto ontológico. Achas mesmo que a burqa se vai tornar um ícone capitalista como a foto do Che? Será um processo de conversão que vou gostar de observar. Especialmente se aqueles que usam as t-shirts do Che forem os mesmos a usar burqa. Ironia dupla.

7. A analogia é sustentável porque tem o objectivo de demonstrar que o raciocínio por metonímia, quando é posto num espelho, dá sempre merda. Tu achas que os místicos indianos isto ou os índios americanos aquilo. Há uns anormais no Afeganistão que te consideram promíscuo porque ouviram falar de uns tipos ou tipas que andaram a espalhar o HIV. Isto é dar-lhes armas retóricas. Homogeneizar nunca dá bom resultado, é sempre pernicioso.

8. Não é, de todo, fascista. É o que eu defendo e o que qualquer pessoa que perceba algo do mundo em que vivemos defende. A liberdade de expressão é sagrada e inviolável; a violação dos direitos fundamentais não. Respeitar os direitos culturais de alguém ou de um grupo não signifca aceitar atentados aos princípios democráticos. Porquê? Porque, tal como reconheço o direito de todos à sua história, também defendo o direito da Europa à sua.

Unknown disse...

Quanto ao tal senhor, dou-te um exemplo mais mediático. O Rowan Williams, arcebispo da Cantuária, defendeu, em 2007, que a adopção da Shari'a é inevitável, no Reino Unido. É um supremo idiota.
Porquê? Por duas razões: em primeiro lugar, este tipo de gente será o primeiro a clamar por soluções fascizantes, quando ou se o tempo delas chegar. O dogmatismo vai, inevitavelmente, dar nisto: inverte-se com facilidade aquilo em que se acredita; em casos extremos, dá em "duplopensar". Pacheco Pereira/Durão/Zita Seabra.
Em segundo lugar, vários inquéritos demonstram que, se controlares tudo o resto (classe, idade, etc), a aceitação de um patamar básico de valores democráticos é generalizada entre grupos ou comunidades cuja origem cultural é não-ocidental. Sinceramente, acho que isso não acontecerá. O pluralismo já é uma realidade e, que eu veja, não há qualquer movimento rumo a uma utopia multiculturalista governada por idiotas politicamente correctos. Quando isso acontece, há retaliações graves, como acontece na Holanda. Não é à toa que tens lá o Geert Wilders e a Ayan Hirsi Ali. Em resumo, o Rowan Williams defendeu aquilo porque lhe dá jeito: afirmar que há uma corrente maioritária, dentro das comunidades islâmicas europeias, que defendem o salafismo, é esquecer muita coisa.

Se devemos ficar atentos? Sim. Eu não quero que a Europa se torne o Irão de 1980. Mas recuso as leituras absurdas do Irão que vejo propagadas na TV de hoje, esquecendo que o Irão foi a Pérsia e que, por isso, a cultura política é muito mais vibrante que noutros países da região.

A mim assusta-me mais a emergência de partidos como o CDS, o BNP ou a Lega Nord, que apelam ao racismo latente de pessoas que tendem a ver no diferente uma ameaça. Isto é grave.

Como disse, acho que tens direito a achar o teu contexto melhor que o dos outros e a não querer visitá-los.